ENTREVISTA / PHILIPP SCHIEMER

Abertura sim, mas
bem planejada

Para o presidente da Câmara Brasil-Alemanha, abrir o comércio com o exterior vai melhorar a competitividade da indústria brasileira, mas é preciso planejar o passo para não provocar quebras

Nely Caixeta e Armando Mendes
Publicado em 26 de maio de 2019, 13:02:42

Linha de montagem da Mercedes em São Paulo: transição para a indústria 4.0   foto Divulgação MB

Compartilhe

A economia brasileira precisa se abrir mais ao mundo, para melhorar sua competitividade. Mas essa abertura precisa ser bem planejada, de maneira a dar tempo às empresas de se adaptarem ao novo modelo.

A recomendação — cautelosa, diante das receitas liberais mais extremas —, é de Philipp Schiemer, presidente desde março da Câmara Brasil-Alemanha (AHK), que representa as empresas industriais e comerciais alemãs em atividade no Brasil.

“As empresas alemãs estão totalmente em prol de uma abertura comercial, agora isso tem que ser discutido e planejado”, diz Schiemer, executivo alemão que é também, desde 2013, presidente da Mercedes Benz do Brasil e CEO para a América Latina da montadora. “Temos que traçar este caminho. Se a gente faz isso da noite para o dia, a metade das empresas aqui vai quebrar.” 

A abertura comercial, a indústria 4.0 — o novo modelo de manufatura que tem à frente empresas e o governo alemão —, bem como o incentivo a startups inovadoras e o apoio à entrada de empresas brasileiras no mercado alemão são itens da agenda atual da AHK, fundada há 103 anos. 

Com sede em São Paulo, a câmara brasileira é uma das maiores no mundo — só perde para a de Xangai, na China, diz Schiemer, que tem ampla experiência no Brasil. Desde 1991, sempre na Mercedes, esta é sua terceira temporada brasileira, o que transparece no português fluente em que conversa. A seguir, os principais tópicos da entrevista de Philipp Schiemer à PIB.

Schiemer: abertura bem-feita vai melhorar competitividade  foto Divulgação MB

::  Privatizações e abertura comercial

Como as empresas alemãs no Brasil vêem uma possível abertura da economia para a concorrência de fora?
Philipp Schiemer — A indústria e as empresas alemãs apoiam isso, em princípio, porque entendemos que hoje, para ser competitiva, uma empresa precisa ter acesso ao mercado externo – ela não pode ficar isolada aqui. 

O mercado brasileiro era fechado e isso era ruim para a competitividade. As empresas alemãs apoiam o conceito e isso tem que ser feito de maneira planejada. Você não pode ter um modelo que funcionou até agora, e mudar do dia para a noite.

As empresas alemãs estão totalmente em prol da abertura comercial, agora isso tem que ser discutido e planejado. Tem que haver um caminho. Nós queremos ser competitivos e as empresas alemãs estão procurando um diálogo com o governo para construir esse caminho.

Qual seria o impacto e os custos da abertura para os negócios no Brasil?
Acredito que a abertura comercial, a médio prazo, tenha muito mais benefícios do que danos.

Todo mundo vai se beneficiar – as empresas, porque vão ser mais competitivas; o consumidor, porque vai ter produtos melhores e mais baratos; e o país, porque vai ser mais atrativo para se investir.

Agora, logicamente a transição terá um certo custo. Algumas empresas não serão competitivas e talvez tenham que fechar.

Tenho a certeza de que outras empresas, que hoje não investem no Brasil porque não conseguem exportar a partir daqui, vão começar a investir por achar o país interessante — porque o Brasil tem um mercado interno grande e, se tiver custo competitivo, também consegue exportar. 

Como essa abertura impactaria as exportações brasileiras?
A matéria-prima no Brasil é mais cara, muitas vezes porque o mercado é fechado e não tem concorrência internacional. Nós precisamos pagar por insumos que poderíamos comprar mais barato em outro lugar. Mas como o mercado é fechado e tem muitos impostos, eu preciso comprar aqui.

Isso torna o meu produto mais caro e eu não consigo exportar, porque meu concorrente compra a mesma peça mais barata lá fora. Mas há no Brasil casos de sucesso que mostram que é possível competir [globalmente]. Veja o exemplo da Embraer, uma empresa que disputa o mercado bastante competitivo da aviação. 

Por que ela é competitiva? Porque consegue importar. Ela compra muitas peças onde consegue a melhor tecnologia e o preço é mais baixo, mas monta aqui os aviões e os vende para fora. Nós queremos ter a mesma possibilidade na indústria automobilística.

A indústria está falando com o governo sobre isso?
O governo já manifestou que pensa dessa maneira. Agora temos que traçar este caminho. Se a gente faz isso da noite para o dia, a metade das empresas aqui vai quebrar.

Acho que precisamos de tempo para nos adaptarmos. Ao mesmo tempo, precisamos aperfeiçoar as leis para que as empresas daqui fiquem mais competitivas.

Então, quando se abrir o mercado, não terei problema, consigo competir. Acho que seria injusto abrir o mercado agora e as empresas não terem chance de competir.

Privatizações e projetos de infraestrutura também interessam às empresas alemãs?
A abertura, as privatizações, voltar a investir na infraestrutura — tudo isso é muito atraente porque o potencial do Brasil é enorme.

Quando há possibilidades, é do interesse das empresas alemãs participar — já participam da privatização de aeroportos, por exemplo. Nem sempre ganham, mas ganharam em Porto Alegre. O mesmo vale para projetos de infraestrutura.

Componentes automotivos: competição global reduziria custos  foto Divulgação MB

::  Custo Brasil e reformas

O que mais precisa ser feito para reforçar a competitividade das empresas?
Não é segredo nenhum onde o Brasil peca. Podemos começar pela infraestrutura. 

O Brasil perde muita competitividade por causa dos grandes custos de infraestrutura logística. Na agricultura, a participação do custo logístico é em torno do dobro dos custos na Europa e nos Estados Unidos. 

A segunda dificuldade é a tributação, um pesadelo. Você tem que ter uma estrutura administrativa muito grande. Aqui na Mercedes, precisamos de quinze vezes mais pessoal do que em qualquer outro país — quinze vezes! 

A terceira: o custo do trabalho é elevado. O importante, no caso, não é o salário. O salário do trabalhador brasileiro não é o mais baixo do mundo, mas é competitivo.

O problema são os encargos sociais. É o maior custo de encargos no mundo. A Alemanha, com certeza, é um país com impostos e altamente regulamentado. Lá se paga a metade de encargos sociais. 

No Brasil, as empresas pagam para o Estado, como encargos, a mesma coisa que pagam para o trabalhador. Isso tira a competitividade. Nem falo de México, Índia ou China, onde os encargos sociais praticamente não existem.

A reforma trabalhista não avançou nesse ponto?
A reforma ajudou a regulamentar melhor os contratos de trabalho e a reduzir os casos trabalhistas, mas isso é outra coisa.

Primeiro tem a parte financeira – a empresa paga salário e paga encargos sociais. Isso é custo para a empresa, não tem a ver com as leis trabalhistas.

Outra coisa é a lei trabalhista, que no Brasil é tema complicado. Cada tribunal tem um entendimento.

De todos os casos trabalhistas que a Daimler tem no mundo, 95% são do Brasil — a Daimler mundial tem 300 ou 400 mil funcionários. Nós, sozinhos, temos 3.500 casos.

Isso a nova lei está tentando melhorar. O número de casos talvez esteja caindo, não foram para zero mas diminuiram em 50%. É um avanço. É competitivo com outros países? Ainda não, mas melhorou.

O que mais, na sua opinião, precisa mudar?
O maior problema hoje é a falta de segurança jurídica. A Mercedes é muito sindicalizada, como é a maioria das grandes empresas alemãs. Nós conhecemos o relacionamento com os sindicatos da Alemanha, estamos acostumados com isso.

Mas os acordos com os trabalhadores que fazemos aqui, mesmo os negociados com sindicatos, não tem segurança jurídica. O juiz da esquina pode decidir que não concorda e condenar a Mercedes a pagar uma indenização, mesmo que a gente tenha um contrato, um acordo sindical. Isso é um grande problema.

A nova lei tem um aspecto positivo. Ela determina que o acordo sindical dentro das empresas se sobrepõe à lei. Esses acordos serão considerados mais fortes que a lei. Isso dá segurança jurídica.

O problema é que ainda hoje temos juízes trabalhistas que têm uma interpretação diferente e não aceitam isso. Mas a direção da lei é completamente correta.

Tem que haver, logicamente, as leis básicas, mas o resto tem que ser regulamentado entre empregado e empregador, através de acordos sindicais. E isso deve valer também na frente do juiz.

Em teoria, provavelmente, muitos casos vão chegar ao Supremo e, uma vez lá, vai ser tomada uma decisão que valerá para todos os outros. Mas isso pode levar anos. Com a mudança da lei, já melhorou.

Leia mais

  1. Exportador paga caro para chegar ao mercado global
    Pesquisa aponta problemas que prejudicam competitividade
  2. Fitesa lidera mais uma vez Ranking FDC de multis brasileiras
    Empresa gaúcha manteve a maior presença global
  3. Com uma pequena ajuda do MIT
    Startups ganham consultoria de programa acadêmico
:: Indústria 4.0 e Sistema S

O que é necessário fazer para avançar na implantação da indústria 4.0 no Brasil?
O que é preciso para a indústria 4.0, no fundo, são duas coisas básicas: a primeira é acesso à tecnologia.

Quanto mais facilitado for o acesso a máquinas mais baratas, mais as empresas vão investir. A maioria dessas máquinas precisa ser importada, ou seja, quanto maiores as facilidades para a entrada, mais as empresas brasileiras poderão investir na tecnologia.

A segunda coisa básica – e aí sim, estamos tratando com o governo –, é a formação das pessoas. Precisamos ter pessoas qualificadas porque essas novas tecnologias necessitam de novas habilidades.

Estamos conversando com o Senai para criarmos cursos especializados que preparem técnicos jovens para essas profissões. E promovemos a formação dual, como no sistema alemão, em que a pessoa aprende sua profissão dentro de uma empresa. Ela divide o tempo entre trabalhar na empresa e ir à escola e tem dupla formação, na teoria e na prática.

Em que faixa de idade?
Na Alemanha, começa a partir dos 16 anos e vai até os vinte. Uma formação para se aprender uma profissão leva normalmente três anos e você recebe um diploma, é qualificado.

É um modelo muito bom para preparar a pessoa para a vida e para entrar nas empresas, que estamos discutindo com o governo. Já temos um curso de Mecatrônica seguindo o sistema dual alemão. Em algumas empresas, já temos pessoas formadas nesse curso, e elas têm tanto o diploma brasileiro como o alemão.

Para as empresas, isso gera competitividade maior, você tem pessoas mais qualificadas. A Bosch, por exemplo, dá este curso de Mecatrônica para alguns funcionários. É o nosso primeiro passo com o sistema dual.

A Mercedes do Brasil, aqui, já funciona como indústria 4.0?
Estamos investindo fortemente e preparando as linhas agora. Inauguramos dois prédios novos para funcionar 100% com a tecnologia 4.0. Mas muita gente ainda não sabe o que é isso.

Traduzimos a indústria 4.0 como uma combinação entre o ser humano e a máquina. Os dois conversam. Antigamente, eram polos separados.

Hoje, as máquinas são tão inteligentes que elas falam com as pessoas e facilitam o trabalho do dia-a-dia. O armazenamento de dados e de informações tem muito mais rapidez.

Isso ajuda a fazer o trabalho certo e reduz a quantidade de erros numa fábrica. Aumenta muito a segurança e a eficiência. Estamos investindo. Toda a fábrica, daqui a pouco, vai começar a trabalhar com esses princípios.

Nesses dois prédios, o que vocês estão fazendo de novo com a tecnologia 4.0? É uma linha de montagem inteira?

Exatamente, precisa ter toda uma linha funcionando, pois você não consegue fazer tendo uma máquina 4.0, e todo o resto não. Tem de ser tudo integrado, ou não funciona.

Nosso conceito, qual é? Queremos ter as pessoas trabalhando no produto final. Outras atividades — procurar uma peça, pegar sua ferramenta —, tudo isso é automatizado. Então, o equipamento é bem automático, a peça necessária para a pessoa montar um caminhão vem até ela, não tem que procurar. Eficiência é a pessoa trabalhar no produto, e não ter que se deslocar da produção para procurar uma peça.

A logística das peças se faz com carrinhos que andam sozinhos — vão até o armazenamento, pegam a peça e levam para a linha de montagem. A pessoa aperta, vê se está tudo em ordem, olha a qualidade. Mas as coisas que não agregam valor são feitas por máquinas.

Há máquinas que podem indicar, por exemplo, qual a melhor maneira de cortar uma chapa?
Sim, exatamente. Mas esse é um modelo simples de uma ação repetitiva. Tem coisas bem mais complicadas. Se pensamos no acabamento interno de um carro, tem que apertar aqui e ali, é um trabalho muito manual.

Tudo hoje se faz armazenando dados, então você sabe quem trabalhou em que produto, com que torque o parafuso foi apertado, está tudo armazenado. Depois combina-se isso com os dados que recebemos no campo: o caminhão xis teve uma falha, caiu alguma peça.

Então, é possível saber quando este caminhão foi montado, quem montou e com que equipamento. Assim, se torna mais fácil resolver qualquer questão que surja mais tarde.

Sabemos em que dia houve problemas — recebemos uma peça errada, ou o parafuso de um fornecedor teve um defeito —, e sabemos exatamente em que caminhões estes parafusos foram montados.

Antigamente, não se sabia disso. Tinha um problema num parafuso e não se sabia quantos caminhões tinham esse parafuso. Hoje, você sabe em que caminhões ele foi montado e em que lugares do país estão.

Se precisar fazer um reparo, vou direto nestes caminhões. Isso facilita muito, você detecta problemas muito mais rapidamente do que antes.

Temos que falar também do que estamos aprendendo. Hoje temos muitos dados, mas o que podemos fazer com esses dados, ainda não sabemos direito. É onde entram as startups.

Muitas vezes você fala: tenho xis dados sobre a produção. O que eu faço com isso? Então vêm os jovens especialistas e dizem: com esses dados, podemos criar este algoritmo. Isto lhe traz esta informação. E assim se criam novas formas de trabalhar.

Com relação ao Senai, o governo é muito crítico sobre o Sistema S. Como o senhor vê isso?
Sobre os problemas do Sistema S, em termos de financiamento, acho que é um assunto à parte. Eu só posso falar sobre a organização Senai que promove cursos técnicos, e com eles nós temos um relacionamento muito bom.

Temos uma escola do Senai aqui onde formamos profissionais. Esses cursos são hoje os melhores que existem no Brasil para formar jovens, são uma coisa fantástica. Temos 100 pessoas que passam, por ano, por cursos do Senai. Muitos deles depois conseguem emprego na Mercedes.

Temos diretor que começou no Senai apendendo a montar – tem muita gente assim. E nós estamos muito satisfeitos com o trabalho com eles — hoje, o Senai é uma instituição que nos fornece jovens para a produção,  então é muito valioso.

Para vocês, o custo/benefício do sistema S vale a pena?
Vamos falar assim, mais uma vez: temos encargos sociais muito elevados. E uma parte dos encargos sociais, acho que vai para o Sistema S. Isso tem que ser discutido.

Agora, o resultado do Senai, especificamente para nós, para toda a indústria, hoje é muito relevante, porque é a única forma que você tem — fora a formação dual, que estamos começando —, é a única escola técnica que forma técnicos com uma qualificação competitiva.

Linha de montagem 4.0: comando na ponta dos dedos  foto Divulgação MB

::  Brasileiras na Alemanha/ internacionalização de startups

De que maneira a Câmara incentiva empresas brasileiras a se internacionalizar via Alemanha?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o mercado na Alemanha é bastante maduro. Não é fácil começar lá. Tem que ter produtos específicos, muito competitivos. E precisa conhecer as leis, a língua…

A Câmara faz os contatos. Tentamos fomentar isso, temos publicações  que criamos com escritórios de advocacia para ajudar as empresas brasileiras nos primeiros passos lá fora.

Para as brasileiras que vão para a Alemanha, temos o Assim que se faz. E para as empresas alemãs no Brasil, a série de publicações So geht’s, com os primeiros passos para investir e firmar sua empresa.

Quais as empresas brasileiras que estão lá?
Um caso bastante interessante é o da Tramontina, a empresa brasileira que mais investe na Alemanha. Eles têm um escritório na Alemanha, em Colônia, e um centro de distribuição a partir do qual distribuem produtos para toda a Europa.

Um setor que tem um grande potencial é o da tecnologia, TI e startups. O Brasil está forte nesta área, então temos a internacionalização de startups. Por meio do programa Startups Connected, a gente ajuda essas empresas a começarem no mercado alemão. A TNS, uma startup que participou do programa, fez esse caminho.

E, por meio das feiras que a Câmara representa — somos representantes oficiais da Messe Berlin e da Deutsche Messe—, também promovemos a internacionalização. Ajudamos as empresas a se promoverem nessas feiras, com stands coletivos brasileiros.

A Easy Mobile, uma empresa brasileira, começou o processo de internacionalização participando da IFA, uma das nossas maiores feiras.

Existe certa criatividade brasileira nessa área, e as empresas já começam internacionais — já nascem falando inglês, não é?
Exatamente. As startups de tecnologia tem que entender um problema e tem que resolver. Aqui tem centros de competência: Blumenau é um centro que tem muito investimento em tecnologia. Aqui em São Paulo há vários espaços em que se criam essas empresas. E o investimento também não é tão alto, então o potencial é maior.

Centros de excelência como esses há muitos no mundo — a competição é global. Como uma startup brasileira pode recorrer a vocês? As empresas alemãs pedem uma solução e vocês buscam as startups?
O programa Startups Connected funciona exatamente assim: as empresas nos procuram e pedem, por exemplo — “a gente gostaria de propor um desafio de agricultura digital”.

Então nós promovemos o desafio dentro dessa iniciativa: buscamos as startups, fazemos o filtro e dizemos: esta tem maturidade suficiente, esta outra aqui ainda precisa se desenvolver…

Promovemos os pitches e as empresas fazem a conexão com as startups indicadas. A escolhida ainda ganha um programa de aceleração no qual a Câmara oferece um processo de mentoria. Temos parceiros para isso.

Veja também

Na capital dos móveis

Minha Paulista

Natureza urbana tipo exportação

Deixe seu comentário