ECONOMIA DIGITAL

Revolução verde 4.0

O avanço digital prepara o campo para um novo salto e promete mudar a produção de alimentos no país com big data, Internet das Coisas, inteligência artificial e mais sustentabilidade

Nely Caixeta e Armando Mendes
Publicado em 22 de janeiro de 2020, 16:02:48

Comunicação máquina-a-máquina em fazenda da SLC   Divulgação

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Esta reportagem é composta de cinco partes. Leia os demais textos nos links abaixo:

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Há três anos, Gabriela Vieira da Silva era uma bióloga e engenheira agrônoma de 28 anos de idade, com mestrado e doutorado em entomologia e uma ideia na cabeça: trabalhar com o controle biológico de pragas, que emprega métodos naturais para proteger os cultivos sem o uso de agrotóxicos (entomologia, a propósito, é o estudo dos insetos). Junto com um colega de faculdade, Gabriela buscava desenvolver um método mais eficiente para liberar agentes biológicos em plantações – insetos predadores ou parasitas capazes de dar combate às pragas que atacam as lavouras.

Para pôr de pé suas ideias, Gabriela e Luiz Guilherme Lira de Arruda – o colega, hoje sócio – trilharam o caminho das startups. Em 2016, criaram uma pequena empresa, a Agribela, que veio ao mundo abrigada na incubadora de novos negócios da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, onde ambos fizeram doutorado.

No ano seguinte, a Agribela foi selecionada para participar de um programa de aceleração no hub Pulse, de Piracicaba, no interior de São Paulo. O Pulse é mantido pela Raízen, uma joint venture da brasileira Cosan com a multinacional anglo-holandesa Shell que é hoje uma das maiores produtoras de açúcar, etanol, combustíveis e bioenergia do país.

Como é frequente entre startups, o passo resultou de uma chance inesperada, mais do que de planejamento. “Foi engraçado”, conta Gabriela. “conheci um pessoal num evento e eles comentaram: ‘tá sabendo do Pulse?’ Eu não tinha ouvido falar, fui procurar e fiz nossa inscrição no último dia.” A vaga no Pulse e a proximidade com a Raízen garantiram aos jovens inventores/empreendedores o apoio e os meios de pesquisa para desenvolver um processo próprio de combate à broca da cana-de-açúcar – a lagarta Diatraea saccharalis, que infesta as plantas e prejudica o rendimento do cultivo.

Gabriela, da Agribela: larvas lançadas em cápsulas    Divulgação

A ideia de Gabriela e seu sócio era utilizar drones e cápsulas de papel reciclado para lançar do alto, sobre as plantações de cana, larvas da vespa Cotesia flavipes, o agente biológico que combate a lagarta. Para isso, as larvas são acondicionadas em cápsulas esféricas, com orifícios que permitem a saída das vespas, uma vez eclodidas.

A novidade está no método de espalhamento das larvas, não no próprio agente biológico, já bem conhecido. E as provas de conceito, feitas em parceria com a Raízen, comprovaram que o método é mais preciso e sustentável do que o processo usado habitualmente: a distribuição manual das larvas nas plantações de cana, dentro de copinhos plásticos.

Aprovada a ideia, em 2018 a Raízen passou a testar comercialmente a novidade em seus cultivos de cana e a Agribela ganhou seu primeiro cliente. “Emitimos nossa primeira nota fiscal no fim do ano passado”, diz a bióloga. De lá para cá, ela e o sócio vêm trabalhando para estender o método a outras lavouras, como soja, milho, tomate e café, e para desenvolver outras tecnologias – como um tipo de armadilha para o monitoramento de pragas da cana-de-açúcar e do café –, que serão testadas em paralelo com as cápsulas lançadas por drones

.:: A agricultura 4.0

Gabriela, seu sócio e a Agribela representam bem a nova geração de inventores e startups que se dedicam a escarafunchar problemas e encontrar soluções inovadoras para a agricultura e a pecuária. As agtechs, como são chamadas, constituem a ponta de lança de um movimento que vem ganhando força no país, dedicado a aplicar no campo o vasto arsenal de tecnologias digitais hoje disponíveis.

Em um paralelo com a já bem conhecida indústria 4.0, este movimento começa a ser chamado de agricultura 4.0 – uma expressão que engloba tudo o que tenha a ver com o uso, na  agropecuária e na exploração florestal, de tecnologias como a Internet das Coisas (IoT), big data, automação e robótica, além de doses crescentes de inteligência artificial.

A agricultura 4.0 promete, de um lado, máquinas conectadas em rede, inteligentes e autônomas; comunicação em tempo real entre as sedes das fazendas e as máquinas e trabalhadores no campo; e uma infinidade de sensores instalados nos equipamentos, cultivos e animais de criação, para monitorar a todo momento a produção.

Este acompanhamento de perto permitirá agir de pronto para corrigir erros e evitar perdas – por exemplo, ajustando a quantidade de insumos aplicados numa plantação ou dando combate imediato ao primeiro sinal de um surto de praga.

Agricultura de precisão: pulverização sob medida em cultivo de soja   Divulgação

Parte das novidades – principalmente as máquinas automatizadas, como tratores com GPS e drones para intervir nas plantações, à maneira da Agribela – já começa a estar presente nas fazendas brasileiras. Os próximos anos verão crescer a importância do outro pilar da agricultura 4.0: o uso de computadores e algoritmos para processar o enorme volume de informações gerado pela digitalização do campo.

 

A AGRICULTURA 4.0 SERÁ CAPAZ DE INTERLIGAR
MÁQUINAS E OBJETOS E PROCESSAR UM
VOLUME ENORME DE DADOS

 

Uma única máquina com sensores – uma colheitadeira, por exemplo – pode gerar 32 gigabytes de dados por safra. “As propriedades rurais do país preparam-se para dar um novo salto”, diz Silvia Massruhá, chefe-geral da Embrapa Informática Agropecuária, braço digital da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com sede em Campinas (SP). “Vem aí uma agricultura mais conectada, baseada em conhecimento digital e inteligência artificial, capaz de interligar objetos e processar uma massa gigantesca de dados.”

Até onde pode chegar este salto? Há quem diga que as tecnologias digitais têm potencial para promover uma nova Revolução Verde – o rótulo coletivo para os avanços na produtividade agrícola alcançados no mundo na segunda metade do século 20. Essa primeira onda de tecnologia se apoiava na correção dos solos, em agroquímicos e no desenvolvimento de novas variedades de alimentos tradicionais (como o trigo, o milho e a soja), com rendimento mais alto e mais bem adaptadas a climas e biomas diversos.

Tecnologia digital: novo salto no campo      Divulgação

A Revolução Verde permitiu mais do que triplicar a produção agrícola global e criou as condições para que o Brasil, em cerca de 40 anos, deixasse de importar boa parte dos alimentos que consome para se tornar o segundo maior produtor mundial e líder em agricultura tropical. “Eu não sei se o salto agora será tão grande, mas que vai ter uma mudança substancial, vai”, observa Pedro Valente, diretor-geral da Amaggi Agro, de Cuiabá, em Mato Grosso, uma das maiores produtoras de grãos e fibras do Brasil e do mundo. “Vamos ter condições de analisar com maior precisão esses dados que as máquinas geram – hoje se colhe muita informação e se usa muito pouco na atividade.”

Se as promessas da agricultura 4.0 se cumprirem, os produtores terão melhores informações para responder em bases seguras as perguntas que desafiam o homem do campo desde sempre: O que plantar? O que criar?  Quando? Como irrigar? Como combater pragas e doenças? Quando colher? Quando abater? E tantas outras. Valente diz que se perde tempo e dinheiro por falta dessas respostas (e de meios para processá-las). Com equipamentos e processos digitais, será possível, por exemplo, poupar insumos, água e combustível, o que permitirá baixar o custo de produção e reduzir o impacto ambiental da atividade – este, um motivo permanente de críticas ao agronegócio brasileiro e ao atual modelo de produção agropecuária em larga escala. “São realidades que deverão acontecer nos próximos cinco anos”, prevê Valente. “A gente realmente vai ter uma ruptura entre o que nós fazemos hoje e o que vai ser feito no futuro.”

:: Mais bocas, menos recursos

Todo ganho da tecnologia aplicada ao campo será necessário para enfrentar um dos desafios do século: como alimentar a crescente população do planeta de forma sustentável? Ou seja, sem esgotar os recursos naturais como a terra e a água – cuja exploração ficará cada vez mais restrita – sem contaminar a comida com venenos e sem gerar gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) calcula que o mundo terá 2,4 bilhões de habitantes a mais até 2050, 2,4 bilhões de pessoas que precisarão se alimentar. Na medida em que a renda média das populações tende a crescer, elas também passam a querer alimentação mais variada e de melhor qualidade, o que, por sua vez, aumenta a demanda por grãos para alimentar aves de criação, peixes e animais de corte. Na soma de tudo, será preciso elevar a produção de alimentos (para humanos e animais) em mais de 50% até 2050, no cenário mais grave previsto pela FAO em relatório de 2018.

Máquina da Jacto: cabine de comando digital   Divulgação

Dito de outra forma, trata-se de resolver a complicada equação da segurança alimentar do planeta em condições de produção cada vez mais restritivas. Talvez seja prematuro cravar o quanto a virada tecnológica no campo vai contribuir para a solução desta equação, mas é possível afirmar que produtores, agrônomos, cientistas, engenheiros e empreendedores brasileiros estarão entre seus protagonistas.

Para além do lugar alcançado pelo país entre os maiores produtores e exportadores agrícolas, o Brasil tem hoje um dos cenários mais ativos na criação de agtechs no mundo, ao lado de Israel, Estados Unidos, China e Índia. A cada semana, governos, empresas e instituições de pesquisa anunciam novas iniciativas de apoio e incentivo ao desenvolvimento de tecnologias voltadas para o agronegócio.

O que se vislumbra no horizonte – e esta edição da Revista PIB busca apresentar – é o  surgimento de um ambiente de inovação tecnológica e empresarial com grande potencial para trazer ganhos de competitividade a um setor fundamental da economia brasileira – o campo responde por cerca de 21% do PIB do país e por 42,4% do total das exportações brasileiras, alcançando no ano passado o valor recorde (nominal) de US$ 101,69 bilhões.

Este texto foi publicado entre as páginas 12 e 16 do número 39 da Revista PIB, de dez/2010 e jan/2020, como parte inicial da matéria de capa Revolução Verde 4.0.

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