ECONOMIA DIGITAL
As pequenas na mira
das grandes empresas
Também no campo, marcas estabelecidas se aproximam das ágeis e ousadas startups para acelerar sua conversão ao mundo digital
Nely Caixeta e Armando Mendes Publicado em 22 de janeiro de 2020, 15:42:18Leia a matéria completa
Esta reportagem é composta de cinco partes. Leia os demais textos nos links abaixo:
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Para não perder o bonde da onda de digitalização do campo, grandes empresas começaram a buscar um reforço energético nas startups inovadoras. Muitas dessas grandes marcas têm sede em São Paulo, entre as quais os braços brasileiros de companhias multinacionais bem conhecidas.
Dois times distintos integram este grupo: o primeiro reúne indústrias fornecedoras de equipamentos e insumos para a agropecuária, tais como sementes, agroquímicos e alimentação animal – ou seja, empresas com pertencimento histórico ao mundo agro, que tentam agora se tornar também digitais.
Já o segundo time agrupa companhias globais de eletrônica, tecnologia e comunicações que veem um mercado a desbravar – querem disputar uma fatia dos negócios que se abrem com a invasão das fazendas pelos sensores e algoritmos. Para marcas com raízes no século 20 ou antes, a rota da mudança deve passar por uma virada importante no próprio negócio.
Empresas do primeiro grupo tentam deixar de ser apenas produtoras de bens e insumos para o agronegócio para se tornar provedoras de serviços ancorados em tecnologias digitais – os quais, afinal, acabam por demandar a utilização de seus produtos. Tome-se o exemplo da Cargill, uma multinacional norte-americana com mais de 150 anos, atuante em 70 países nas cadeias produtivas da agricultura e da alimentação.
Ao sondar pelo mundo startups inovadoras, em busca de parceiras para acelerar sua entrada o mundo digital, a Cargill encontrou a Agriness, uma agtech brasileira que desenvolve plataformas digitais para a gestão da produção de suínos. Adquiriu então uma participação minoritária na empresa de Florianópolis (SC).
A catarinense Agriness: ponta de lança digital da Cargill Divulgação
O plano da multinacional é ampliar o alcance de softwares e plataformas digitais da Agriness para além da suinocultura, fazendo da empresa catarinense sua ponta de lança global na prestação de serviços também para a criação de aves e outros produtos animais.
Para o segundo grupo de empresas, as que não tinham ligação com a agropecuária, a virada é outra: trata-se de descobrir como ganhar novos mercados com base na demanda crescente por tecnologias digitais no rico universo agro – até ontem, algo distante de sua mirada estratégica.
A Bosch, multinacional alemã dos ramos automotivo, de tecnologia industrial, de ferramentas e eletrodomésticos, está neste time. A companhia tem como visão de futuro tornar-se líder mundial em Internet das Coisas (IoT), e a agricultura é hoje um campo aberto para a inovação neste campo.
Bruno Bragazza, gerente de inovação da Bosch para a América Latina, conta que ficou fortemente impactado ao tomar conhecimento de um documento da FAO que trata da demanda global por alimentos nas próximas décadas. O argumento é que a necessidade de mais comida terá de ser atendida por ganhos tecnológicos e de produtividade, uma vez que a produção de alimentos esbarra em limites óbvios: a finitude de terras agricultáveis, a pressão do risco de esgotamento de recursos naturais e a ameaça do aquecimento global, que exige um corte drástico na emissão de gases de efeito estufa.
Bruno Bragazza: o campo na mirada estratégica da Bosch: Divulgação
Cerca de 80% do aumento na produção de alimentos terá de vir de ganhos de produtividade das lavouras, indicam as projeções da FAO. “Provavelmente, isso virá por meio de tecnologias de smart agriculture”, diz Bragazza. Além disso, parte da produção deve se deslocar da zona temperada, que perderá áreas cultiváveis, para zonas tropicais, em particular o Brasil e a África. “Estamos no lugar certo, então”, conclui. “Foi isso que nos levou, na Bosch, a focar no agro as principais iniciativas de novos negócios.”
GRANDES EMPRESAS TAMBÉM BUSCAM PARCERIAS
COM AGTECHS PARA NÃO PERDER O BONDE
DA DIGITALIZAÇÃO DO CAMPO
Outras empresas, como a norte-americana IBM, usam as parcerias com agtechs como atalho para complementar a pesquisa e a inovação feitas em casa. A filial brasileira da IBM apoia, por exemplo, startups que precisam de recursos de inteligência artificial.
Um exemplo é a parceria com a Solinftec, agtech de Araçatuba (SP), especializada em monitoramento e gestão de lavouras. Seus computadores de bordo coletam dados de desempenho e produtividade de colheitadeiras e de outras máquinas usadas no campo, que passam então a ser tratados e processados pelas tecnologias da IBM.
Já a Samsung, multinacional coreana conhecida pelos celulares e eletrônicos, oferece a empresas de tecnologia o programa de aceleração de produto Creative Startups, criado na matriz e replicado no Brasil. Paulo Quirino, seu coordenador, conta que desde a segunda rodada do programa chama a atenção a presença de candidatos do mundo agro.
“A gente trabalhava mais áreas como saúde e educação, e a partir de 2016 começaram a brotar agtechs”, ele diz. De lá para cá, três projetos ligados ao setor já tiveram a mentoria da Samsung.
:: Os desligados e os integrados
Com tanto interesse, não é surpresa que o campo para as agtechs tenha florescido. Elas já chegam a 1.125, de acordo com o Radar Agtech Brasil 2019. São também extremamente diversas, e suas atividades cobrem todo o amplo espectro do agronegócio – o Radar as distribui por 33 categorias distintasSão exemplos empresas como a Sintecsys, de Jundiaí (SP), residente no habitat do Bradesco – seu pulo do gato foi automatizar com câmeras e algoritmos o monitoramento e o combate a incêndios em plantações e florestas.
Ou a Agrosmart, de Campinas (SP) – uma agtech desde cedo internacionalizada, com clientes em nove países, cujas plataformas digitais integram dados de várias fontes para fazer recomendações práticas aos produtores como o melhor momento de irrigar um cultivo.
Ou ainda a Horus, de Florianópolis (SC), uma fabricante de veículos aéreos não tripulados (VANTs), os populares drones, usados na agricultura para mapeamento e monitoramento. A Horus desenvolveu algoritmos para fazer análises agronômicas com base nas imagens captadas por seus aparelhos. Assim como a Agrosmart, é uma empresa associada ao Pulse, o hub digital de Piracicaba – uma espécie de âncora que ajuda a disseminar conhecimentos entre as startups residentes.
Drone da Horus: monitoramento e análise agronômica Divulgação
Nem todas as agtechs encontram o caminho do sucesso (ou da simples sobrevivência). No mundo veloz das startups, já é um bordão a conta simples: de cada dez empresas iniciantes, nove desaparecem no caminho e só uma sobrevive. No nicho das agtechs, uma das causas apontadas para isso é a pouca noção, da parte dos empreendedores de tecnologia, dos problemas reais dos produtores rurais.
É frequente que uma solução desenvolvida com grande investimento de tempo e trabalho acabe por se mostrar pouco útil para o produtor – ou muito cara. Pedro Valente, da Amaggi Agro, acredita que são poucas, das que conheceu, as tecnologias aplicáveis a cultivos em larga escala. “São mais para uma fazenda pequena ou uma operação hortifrúti”, ele avalia. “A maioria das pessoas nesse meio tem pouca prática, conhece pouco [as operações agrícolas] e também não procura quem sabe.”
Diante desse tipo de problema, técnicos da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) chegaram a recomendar que o Plano Nacional de Internet das Coisas, lançado em junho deste ano, previsse cursos de capacitação de profissionais urbanos da indústria e dos serviços, para que entendam melhor como funciona o mundo agro e possam propor soluções agtech mais adequadas.
Rafael Nascimento, assessor técnico do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), lembra que muitos programadores e criadores de software não sabem que os produtores de soja realizam sua receita uma vez por ano, no momento da comercialização da safra. Por isso, ao montar suas planilhas, colocam previsão de receitas mês a mês, como as de um trabalhador assalariado.
Este texto foi publicado entre as páginas 19 e 22 do número 39 da Revista PIB, de dez/2019 e jan/2020, como parte da matéria de capa Revolução Verde 4.0.
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