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ENTREVISTA / MARCELLO DANTAS

Na Serra da Capivara, nasce um museu da natureza

Publicado em 24 de dezembro de 2018, 9:36:36

                                                                                                                         foto Cristian Maldonado

Um museu é uma ideia. Para florescer, precisa de vínculos com a comunidade e do afeto da população que serve. No mês de dezembro, o carioca Marcello Dantas teve a chance de colocar em prática o mote que vem guiando seu ofício de curador e criador de museus e exposições no Brasil e pelo mundo afora.

Sua criação mais recente, inaugurada no dia 18 de dezembro, é o Museu da Natureza – uma estrutura em espiral encravada no Parque Nacional da Serra da Capivara, no sertão do Piauí. Dias antes, atravessara meia Amazônia, entregando ao público o Museu da Cidade de Manaus e abrindo uma exposição sobre o escritor português José Saramago em Belém. Partiu em seguida para atravessar meio mundo, numa viagem à Austrália e Nova Zelândia.

O Parque da Serra da Capivara e a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), que o mantém, são a obra de uma vida da arqueóloga Niède Guidon, sua diretora. Brasileira de origem francesa, Niède dedicou-se a registrar, preservar e estudar as pinturas rupestres e os objetos feitos pelo homem pré-histórico encontrados numa vasta área de caatinga no Sul do Piauí.

A importância desse acervo — cerca de 1.200 sítios com pinturas e material arqueológico e paleontológico dos mais antigos das Américas, com datações de até 48 mil anos atrás —, foi reconhecida em 1991 pela Unesco, que incluiu o conjunto da Serra da Capivara no Patrimônio Cultural da Humanidade.

O novo museu, bem como o investimento feito na infraestrutura de visitação e turismo do Parque e no Museu do Homem Americano, na cidade vizinha de São Raimundo Nonato, visam dar visibilidade e relevância pública ao trabalho de pesquisa de 50 anos desenvolvido na região por Niède e sua equipe.

Nesta entrevista à PIB, Marcello Dantas explica como só assim — ao abrir para o  público o conhecimento científico em linguagem acessível e contemporânea —, é possível construir os vínculos essenciais entre um museu de ciência e história natural e a comunidade que o mantém.

Por que criar um Museu da Natureza num parque nacional dedicado à pré-história da ocupação humana das Américas, que já mantém um Museu do Homem Americano? Como os dois se complementam?
O Parque Nacional da Serra da Capivara é um patrimônio por duas razões: tem os registros da presença humana mais antiga das Américas e uma esplendorosa natureza, um exemplo virgem do bioma da Caatinga.

Os assuntos natureza e homem são muito distintos – o homem é apenas uma espécie em um fragmento da história natural. Há muitos anos que o Brasil não cria um novo museu de história natural.  Já era hora de fazê-lo.

A dimensão dos dois museus também é distinta.  O Museu da Natureza é enorme e apresenta conteúdos fascinantes das pesquisas da Fundham (a Fundação Museu do Homem Americano). Entre eles, as primeiras renderizações de animais até então apenas conhecidos nos altos círculos científicos.

Uma “cortina” de espécimes encapsulados em material transparente  Marcello Dantas

Você escolheu o clima como o princípio orientador das narrativas do Museu da Natureza. Pode explicar como isso acontece nas salas de exposição?
A natureza obedece a somente um senhor: o clima. Ele decide quem fica, quem vai e quem surge.  A história da natureza é a história das mudanças climáticas. Elas definiram as paisagens, as espécies e seus ciclos.

O museu conta a história dessas mudanças e, sempre que pode, usa o exemplo da região para demonstrar. O museu é uma espiral. A viagem é a viagem do tempo, do clima e da natureza, e como eles se relacionam. Até chegar ao presente em que estamos, diante de mais uma mudança climática.

As mudanças climáticas, suas causas e consequências, são ponto de intensa controvérsia científica e política no mundo e no Brasil. O museu reflete esse momento?
Essa é a conclusão do museu. Estamos diante de mais uma mudança e não sabemos que espécies resistirão.

Essa é a primeira mudança climática em que o homem é um dos protagonistas. Qualquer cientista que se preze não pode mais negar a mudança climática.  Ela já está em curso e a todo vapor. Só os idiotas ou venais negariam isso.

Se o Brasil optar por negar fato tão óbvio, vai pagar o preço mais caro de todos. A espiral do aquecimento global pode ter um custo bem mais alto para a humanidade do que para o planeta.

Representação de grandes mamíferos em sala do museu  Marcello Dantas

De que forma a criação do segundo museu reforça a atração da Serra da Capivara como ponto de turismo histórico e arqueológico capaz de encantar não só os brasileiros, mas também visitantes estrangeiros, cuja vinda o governo tem procurado incentivar com facilidades na concessão de vistos?
O Parque Nacional da Serra da Capivara precisa de melhores condições de acesso e melhoria da rede hoteleira local, o que já está acontecendo. Uma grande parte dos visitantes é estrangeira. O governo faz pouco pela região. O museu é um investimento social do BNDES e não tem a missão de retorno do investimento – visa dar visibilidade e relevância pública para 50 anos de pesquisas. É um acervo que pertence ao Piauí e seria hediondo querer levá-lo para outro lugar. Esse patrimônio é a grande esperança de ascensão social da população do entorno

Como foi trabalhar com Niède Guidon, a criadora do Parque?
Niède Guidon, além de uma grande arqueóloga, é uma líder social ímpar num país que precisa tanto de pessoas com a iniciativa dela. É a mulher mais genial que já conheci, a pessimista mais realizadora que existe.  Ela me inspirou muito com sua capacidade de síntese e realização. Adoro Niède.

Acredita que ela vai mesmo se afastar para viver na França, como prometeu?
Não. Mas acho importante que ela habilite uma liderança capaz de substituí-la. Niède já tem 85 anos. Formar sucessores é importante.

Ambiente de exposição do Museu da Natureza   Marcello Dantas

Tal como aconteceu com o Museu Nacional, afinal destruído pelo fogo, o Parque da Serra da Capivara e o Museu do Homem Americano enfrentam dificuldades para manter seu imenso acervo natural e arqueológico. Lutam pela atenção e afeto dos brasileiros, que parecem não se interessar tanto por esse gênero de museu. O que o Museu da Natureza pretende fazer para ser bem sucedido numa área onde tantos falharam?
A premissa não é verdadeira. Bons museus trazem bons públicos. Maus museus os afastam. Não é o assunto que define o público, mas a linguagem. Os museus de História Natural de Nova York e de Londres estão entre os mais visitados de ambas as cidades; o museu de ciência de Chicago é o mais visitado.

Há museus remotos com grande reputação e visitação, ainda que obviamente menor do que os das grandes cidades – respeito muito os museus remotos do mundo, com sucesso ou não. Fazer museu em um lugar pequeno é algo nobre e difícil. Mas o problema dos museus é o abandono de quem cuida e pensa neles.

O Museu Nacional passava por décadas de desamor, com gestores que não o valorizavam e uma universidade que não fez dele um agente social relevante. Ele tinha muito pouco vínculo com a comunidade. Daí para o fio desencapado e a goteira, é uma questão de tempo.

Você criou museus em vários continentes. Trouxe algum modelo ou exemplo internacional para aplicar na Serra da Capivara?
De verdade, não. Fiz museus na Alemanha, Colômbia, Brasil, Argentina e China, além de umas 250 exposições em mais de uma dúzia de países. Já tratei dos mais variados assuntos, mas sempre tentei focar em renovar a linguagem, surpreender e criar vínculos afetivos com a população servida pela instituição.

Isso é sua garantia de sobrevivência. Essa mudança de linguagem era muito necessária, sob pena de os museus se transformarem em locais irrelevantes para a sociedade.

O prédio do museu: construção em espiral encravada no parque   Marcello Dantas

Qual o caminho?
Eu me preocupo em encontrar linguagens as mais variadas para contar velhas histórias de um jeito que os jovens possam se engajar. Não é fácil, mas, sim, é possível.

O mundo e o Brasil melhoraram muito nesse sentido nos últimos 20 anos. Museu é uma ideia; enquanto houver alguém que se importe com essa ideia, haverá pessoas para valorizá-la.

Os museus no Brasil fracassam quando o Estado não os ama e os vê como um ônus. Quando se originam legitimamente dentro de forças sociais e têm uma linguagem contemporânea, dão certo.

Que exemplos de sucesso você pode citar no Brasil?
O Museu das Minas e Metal, que fiz em Belo Horizonte, mistura ciência e história e tem bom resultado, já com quase 10 Anos. O Museu de Ciências da PUC do Rio Grande do Sul é visitadíssimo. É enorme e superambicioso.

A exposição Água, na Oca, que fiz em São Paulo, teve ótima visitação. Quando é oferecido algo interessante, o público gosta e prestigia. Acho que falta ao Brasil um grande museu de ciências.

Como curador, você indicaria um roteiro básico para o visitante que quer conhecer o novo museu e as demais ofertas do Parque da Serra da Capivara?
O Museu da Natureza é a única construção de porte a se situar, tecnicamente, dentro do Parque. O Parque é um delírio, com cânions, boqueirões com pinturas e gravuras rupestres, paisagens de tirar o fôlego, animais variadíssimos.

É necessário ter um guia, mas os acessos são facílimos, com estacionamento, trilhas preparadas com apoios e sombras, banheiros. As estradas são boas dentro e no entorno do parque. O museu é um bom portal de entrada antes da visita ao parque propriamente. Três dias é o mínimo necessário.

É importante ir durante a melhor estação, a chuvosa [de janeiro a junho – N.do E.] Com a chuva, a caatinga fica verde e linda. E os mandacarus florescem.

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