OPINIÃO

Brexit para crianças

Nara Vidal*
Publicado em 27 de setembro de 2019, 17:57:43

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foto Wikipedia Commons

Como explicar o Brexit para uma criança? Nara Vidal, escritora e livreira brasileira que vive em Londres, foi buscar uma imagem musical para tentar fazer o filho Louis, de oito anos, entender a conturbada saída dos britânicos da União Europeia. 

A tarefa foi complicada ainda mais pela chegada ao poder de um  primeiro-ministro conservador, Boris Johnson, aparentemente disposto a empurrar o Reino Unido de volta para uma carreira solo no palco mundial, com ou sem acordo com os antigos – e agora desprezados –, parceiros europeus. Nara fez uma crônica de seus esforços para a Revista PIB:

   

Em 1969, John Lennon informou aos outros integrantes dos Beatles que deixaria a banda. Esse foi o começo do fim. Apesar do talento de sobra de cada um para seguir carreira solo, juntos eles formavam nada menos que o maior fenômeno musical do século XX. 

Essa ruptura de talentos me faz pensar no caos que se estabeleceu no Reino Unido — onde moro desde 2001 —, a partir do referendo em que seus habitantes decidiram separar estas ilhas da União Europeia. 

Em qualquer momento que a gente ligue a TV, Brexit é o assunto, da manhã até o noticiário das dez da noite. Às vezes, tenho a impressão de que quando a desligo para ir dormir, ecoam no ar gelado da Inglaterra as palavras brexit… brexit…

Uma espécie de lullaby cantada por Theresa May e agora pelo populista Boris Johnson. E a gente precisa ir dormir com um barulho desses.

Diante da constante repetição, meu filho Louis pede uma explicação: mãe, o que é Brexit? Antes de mais nada, tento lhe explicar o que é a União Europeia.  É um bloco político e econômico. Não, espera, é um ideal de mercado comum. Não, isso tá complicado. É um clube de sócios. Não, é uma banda. Uma banda de rock. Ou seria uma orquestra?

Nara e Louis: banda de rock e carreira solo para explicar o Brexit      foto Nathan Hallam

Imagine algumas pessoas com dinheiro para comprar excelentes instrumentos e formar uma banda. Baterista, guitarrista, baixista, pianista e, claro, o vocalista que teve aulas caras de canto. Aí, chega outra pessoa que toca flauta. 

Ninguém precisa da flauta para ser uma banda de rock. Mas com a flauta, outros tipos de música poderão ser ouvidos, além do rock. Seria bom também para o flautista, que poderia ter mais destaque e divulgar mais sua arte. 

Tá, bom, entra o tocador de flauta. Em seguida, abriu-se espaço para o tocador de tuba, violoncelo, clarineta, harpa etc…

O grupo começou a fazer um sucesso estrondoso, até a ser copiado. Cada um dos instrumentistas tinha um papel forte e indispensável para o som distinto e rico daquele grupo. Sabiam que juntos, e não sozinhos, eram poderosos, tinham prestígio, eram fortes e belos. A banda passou a ser um dos grupos mais invejados do mundo. 

Um dia, um tocador de alaúde pediu para fazer parte da banda.  O instrumentista era muito talentoso, brilhante até. Mas os outros músicos estavam na dúvida. Afinal não tinham familiaridade com o som do alaúde. 

A confusão estava armada. Os membros originais da banda não queriam a entrada do novo músico, mas os demais instrumentistas não se opunham. Começaram a discordar e imaginar como seria se seguissem carreira solo, já que o moço do alaúde estava trazendo desavenças desde as terras dele, lá no Bósforo.

Alguns dos primeiros fundadores da banda começaram a achar que tocadores de flauta, violoncelo, tuba, clarineta, harpa etc.. não tinham a mesma fundamental importância que o pianista, baterista, guitarrista, baixista, vocalista. 

Começaram a questionar se os outros instrumentistas deveriam gozar do mesmo prestígio e ganhar o mesmo dinheiro que eles ganhavam nos shows. E foi assim que o guitarrista passou a imaginar que a carreira solo seria a melhor solução. 

Ele era um exímio instrumentista e nunca lhe faltaria prestígio, dinheiro. Ele era autossuficiente!  O guitarrista se achava realmente muito importante. E era! Mas os outros integrantes da banda também eram de enorme relevância cultural e econômica, pois o sucesso da banda era precisamente pautado pela diversidade dos instrumentos. 

O guitarrista marcou uma reunião urgente e avisou que queria propor sua saída do grupo musical. Sua mãe e seu pai, que também tocavam guitarra, concordavam que o filho estava sendo sufocado dentro de tanta diversidade. 

Fora os gastos que os pais tinham que ter com viagens. Quantas vezes tinham que levar tocador de tuba no carro grande deles! Francamente, o tocador de tuba não teria seu próprio meio de transporte? Precisava depender do guitarrista? 

E essa ideia de um tocador de alaúde entrar no grupo? Daqui a pouco ninguém reconhece mais o som da guitarra, esse som tão puro. Assim não dá.

foto Wikipedia Commons

Fizeram um referendo na casa do guitarrista. Votaram seus pais, avós, amigos e irmãos. Os pais e os avós, além de alguns amigos que não sabiam o que era tuba e clarineta, mas que não gostavam dos nomes dos instrumentos, votaram para que o guitarrista seguisse carreira solo. 

Outros preferiam que continuasse com a banda. Votos contados e verificados, o resultado do referendo foi claro: o guitarrista deveria agora seguir carreira solo e tinha um prazo para se retirar da banda. 

Mas veja que ironia. O guitarrista era bastante versátil: tocava uma gaita de fole com destreza e seu talento no violino irlandês era inquestionável. O guitarrista aprendeu a tocar esses instrumentos todos ao mesmo tempo e era impossível deixar um deles de lado. 

Uma explicação para criança sobre as consequências do autoengano e da arrogância. O Reino Unido, que é formado por quatro países, tem um deles louco para ser independente: a Escócia, país que votou contra o Brexit e segue insatisfeita — a não ser que consiga sua independência, página não virada e que voltará à pauta a qualquer momento. 

Mas a impossibilidade do Brexit cai exatamente num dos países mais ignorados dentro do Parlamento britânico: a Irlanda do Norte. Sua fronteira com a República da Irlanda, país independente que faz parte da União Europeia, é o que faz do Brexit uma rua sem saída. 

Acredito que, nessa brincadeira, meu filho tenha entendido que juntos somos fortes e que arriscar novos conflitos entre as Irlandas seria de uma inconsequência brutal. 

Dia 28 de março passado foi o que chamamos por aqui de Dia do não-Brexit. Foi um dia muito comemorado pelo reino. Aqui em casa teve vinho português, queijo espanhol, uma bela pizza e de sobremesa tarte au citron feita com limões italianos. Ao brindar, bradamos um cheers bem alto e forte e terminamos a noite dançando The Beatles. 

Enquanto a trama segue, uma nova data nos assombra. Sem perdão do trocadilho, o mais assustador dos premiers que já encararam o Brexit nos avisa que sairemos da União Europeia no Halloween (31 de outubro), com acordo ou sem acordo. 

A previsão de um desastre é tão clara que toda a oposição se uniu e conseguiu passar uma lei que barra um Brexit sem acordo de saída com a Europa. Boris Johnson, por sua vez, afirma que a data não será modificada. 

Será que ele vai descumprir a lei? O Halloween promete ser de suspense. Só espero não seja de terror. 

E segue o baile — por enquanto, com uma bela e diversificada banda. 

* Nara Vidal é a criadora da Capitolina Books, livraria online baseada em Londres e especializada em jovens talentos brasileiros. Ela concorre ainda ao prêmio Oceanos com o livro Sorte

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